O que pensam as academias nacionais de ciência do G20?
Nos dias 11 e 12 de março, as academias nacionais de ciência dos países do G20 se reuniram para abrir os trabalhos do Science20 em 2024. Sob a presidência rotativa do Brasil, a reunião no Rio de Janeiro contou com representantes de todos os países do bloco, exceto Rússia, Coréia do Sul e Japão – os dois últimos enviaram vídeos. Desta vez, a reunião também contou com a participação da Academia Europeia. Instituições científicas internacionais e redes regionais de academias participaram como observadoras.
As discussões desse primeiro encontro giraram em torno das propostas feitas pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), que, na condição de sede do S20, sugeriu cinco temáticas principais: Inteligência Artificial; Bioeconomia; Transição Energética; Saúde e Justiça Social.
A reunião foi aberta por representantes de dois outros grupos de ação do G20 – G20 Financeiro e G20 Social. Ambos reforçaram a importância de os diferentes grupos focais trabalharem em consonância. Tatiana Berringer, do S20 Financeiro, pediu engajamento dos cientistas na construção de sistemas financeiros verdadeiramente globalizados. Por sua vez, Gustavo Westmann, do G20 Social, pediu pragmatismo nas orientações elaboradas e maior participação da sociedade. “Estes devem ser legados do G20 em 2024”, disse.
Em seguida, a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação do Brasil, Luciana Santos, saudou os presentes, sinalizando que a prioridade científica da presidência brasileira no G20 são as assimetrias globais no acesso, desenvolvimento e produção de pesquisa e inovação. “Países em desenvolvimento estão menos preparados para usar e adaptar tecnologias de ponta como a inteligência artificial e as soluções de baixo carbono. Mas existe uma janela de oportunidade para embarcar na incipiente transição verde. Nossa intenção é buscar pontes para transferência tecnológica entre as nações desenvolvidas e os países em desenvolvimento”, disse a ministra.
A presidente da ABC, Helena Nader, abriu as discussões apresentando os pontos focais como temáticas que convergem com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. “Ações concretas são necessárias para que consigamos cumprir com o que foi acordado para 2030 nos âmbitos econômico, social e ambiental”, disse Nader.
Inteligência Artificial
Talvez a questão mais atual da fronteira tecnológica, a Inteligência Artificial (IA) foi intensamente debatida durante os dois dias. Países em desenvolvimento destacaram o investimento em infraestrutura e capacitação tecnológica como cruciais para que o impulso às IA não crie um abismo ainda maior entre ricos e pobres. Foram expressas preocupações sobre um novo tipo de “colonialismo digital”, onde IAs desenvolvidas por países ricos e alimentadas majoritariamente com dados do Norte Global criam novas formas de discriminação e dominação. Acesso aberto, dados abertos e mecanismos de transparência foram defendidos como facilitadores para um desenvolvimento mais igualitário dessas tecnologias.
Outro ponto recorrente foi o impacto das IA no mercado de trabalho. Recentemente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) declarou que 40% dos postos de trabalho atuais podem ser extintos devido à IA. Ao mesmo tempo, foi lembrado que novas tecnologias tendem a criar novos postos de trabalho antes inimagináveis. A Academia Chinesa de Ciências (CAS) defendeu um modelo de IA cauteloso e com o ser humano no centro. Já a Accademia Nazionale dei Lincei, da Itália, manifestou preocupações com IA na indústria bélica.
Representantes europeus lembraram ainda dos impactos ambientais gerados por essa tecnologia. “A pegada de carbono do IA ainda é pequeno, mas deve crescer exponencialmente. O estabelecimento de uma governança global em IA deve ser considerada”, sugeriu Francis André Wollman, vice-presidente da academia francesa.
Bioeconomia
Talvez a questão de maior convergência entre os países presentes, o desenvolvimento de uma bioeconomia, isto é, um modelo econômico mais sustentável e integrado aos sistemas biológicos da Terra, foi defendido por todos.
Esse processo, concordam os países, deve ser feito de forma a incluir as populações locais. Nesse sentido, algumas considerações foram feitas a respeito da capacidade e da velocidade com que cada país pode se adaptar sem sacrificar o bem-estar de seu povo. “Não existe uma receita única para cada país alcançar seu potencial bioeconômico, sumarizou Yunita Winarto, da Academia Indonésia de Ciências.
Em um ponto mais específico, Austrália, Alemanha e México sinalizaram que as práticas de aquicultura deveriam ter mais espaço nas discussões sobre bioeconomia.
Transição Energética
O imperativo das mudanças climáticas força o mundo a considerar seriamente a substituição dos combustíveis fósseis por energias renováveis. Entretanto, a dependência global do petróleo e do carvão faz com que este seja um ponto de muito debate. O Brasil está numa posição privilegiada no contexto global, já que metade de sua matriz energética é limpa, mas somos uma exceção à regra.
A defesa majoritária foi por uma transição para emissões zero, com alguns países enfatizando a questão da justiça energética como um fator crucial. A representante da King AbdulAziz University, da Árabia Saudita, criticou a eliminação total dos combustíveis fósseis. Já a academia chinesa ressaltou que os impactos da transição devem ser considerados junto às especificidades de cada país. Em um exemplo prático, o representante da Academia Nacional de Ciencias Exactas Fisicas y Naturales, da Argentina, abordou o megacampo de gás de Vaca Muerta, onde o país vem elevando a extração de gás natural e estudando a prospecção de gases não convencionais, como o chamado hidrogênio azul, que também polui a atmosfera.
Outro ponto em que o Brasil desponta é o uso de biocombustíveis, um exemplo é o etanol. O país defendeu essa alternativa como uma das ferramentas para a transição climática, no que foi seguido pela Austrália. O representante da academia francesa, por outro lado, criticou os biocombustíveis por competirem por espaço com a produção de alimentos. Em outro assunto, China, França, México e Reino Unido defenderam a energia nuclear como indispensável para a transição energética.
Saúde
Houve uma defesa unânime do conceito de Saúde Única, em que a saúde humana é compreendida em conjunto com a saúde do ambiente. A abordagem holística da saúde foi um dos focos principais da presidência indiana no S20, em 2023, e seus representantes destacaram essa abordagem em suas considerações. Uma diversidade de temas foi levantado, como o envelhecimento populacional, que a maioria dos países do G20 enfrenta, e o impacto das mudanças climáticas na saúde humana.
Justiça Social
Dentro do quinto tema proposto pelo Brasil, um dos desafios chave é o combate à pobreza. Os países foram unânimes na defesa das ciências sociais como essenciais para esses esforços e abordaram várias faces da desigualdade global, como a disparidade no acesso à energia, educação, internet, alimentos e água.
Em temas mais específicos, o representante da academia turca criticou a comunidade científica global por, em sua visão, “não estar abordando a tragédia humanitária em Gaza”. Já o representante da academia argentina manifestou grande preocupação com o que chamou de “total incerteza” sobre o financiamento da pesquisa e das universidades públicas no novo governo de seu país, e agradeceu à ABC pela manifestação em apoio à comunidade científica de seu país.
Conclusão
Durante a sessão final, as academias nacionais se comprometeram a indicar especialistas para compor cinco grupos de trabalho que serão montados em volta das cinco temáticas escolhidas. Esses grupos serão responsáveis por realizar reuniões periódicas e, ao final do processo, enviar recomendações que serão compiladas num documento sucinto durante uma nova reunião, em julho. As recomendações finais do grupo serão encaminhadas aos governos dos países, que estarão reunidos durante a Cúpula do G20, em novembro, no Rio de Janeiro.
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(Marcos Torres para ABC | Fotos: Marcos André Pinto/ABC)